O discurso sobre o câncer: o corpo e o feminino nos cartazes de campanhas educativas do Inca

Abstract

Esta pesquisa localiza-se no quadro teórico-metodológico da Análise de Discurso de base materialista fundada por Pêcheux e instaurada no Brasil por Orlandi. Tem como foco a análise do discurso sobre o câncer nos cartazes de campanhas educativas produzidas pelo Instituto Nacional de Câncer (Inca) e seus órgãos precursores desde a década de 1940 até os dias atuais, e tem como objetivo compreender os modos como se produz o efeito de sentidos sobre a doença nesses cartazes, observando como se dão as transformações, as regularidades e os sentidos estabilizados sobre o câncer ao longo do tempo. Para a construção do arquivo de pesquisa, foram consultadas inúmeras publicações e exposições institucionais, o portal do Inca e a página do projeto História do Câncer, promovido pela Casa de Oswaldo Cruz (COC), da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Esse levantamento resultou em um arquivo contendo 140 cartazes de campanhas educativas produzidos pelo Inca desde 1940 até o ano de 2024. A partir desse arquivo, foi construído o corpus de pesquisa. No processo de leitura do arquivo, a convocação do corpo feminino para simbolizar o câncer foi uma regularidade ao longo das décadas e figurou como critério para a delimitação do corpus, constituído por sete cartazes, um para cada década (1940-1950; 1970; 1980; 1990; 2000; 2010; 2020). As análises mostram o funcionamento de uma memória discursiva sobre a mulher e o feminino em uma formação discursiva patriarcal, que delimita o que pode e deve ser dito sobre o sujeito mulher e atribui a esse sujeito sentidos de cuidado, amor e responsabilidade sobre os processos de saúde e adoecimento; apontam também para o funcionamento da ideologia na formação social capitalista e patriarcal, na qual a mulher exerce papel fundamental, ao (re)produzir e manter, de modo gratuito, a força de trabalho, e que, para tal, é demandada a estar em um lugar de subalternidade e silenciamento. A ideologia produz o efeito de evidência de que essas são tarefas naturais da mulher, que as executa com amor. Quando “ganha voz”, o discurso da mulher é mobilizado a partir do discurso institucional sobre o câncer, que convoca outras mulheres ao cuidado e à preservação da vida. As ações educativas realizadas pelo Inca por meio de campanhas provocam rupturas com um silenciamento da doença, cujo nome muitas vezes sequer é pronunciado, e inscreve novos sentidos, como vida e sobrevivência, na memória discursiva. Contudo, tais ações não se dão fora das condições de produção de uma formação social capitalista e patriarcal e de uma formação discursiva patriarcal. O discurso sobre o câncer funciona mobilizando sentidos de prevenção, autocuidado, sobrevivência, vida, mas também sentidos estabilizados sobre o feminino, silenciando o adoecimento, o sofrimento, a dor e a morte, que ainda assim funcionam no discurso.